domingo, 22 de novembro de 2020

Sobre cotas e mais

Yvonne Maggie: Antropóloga das religiões afro-brasileiras

Depois de tantos anos pesquisando relações raciais, qual sua posição quanto às cotas? Meu argumento sobre as cotas nunca foi devidamente compreendido. Não acho que elas impedirão a qualidade da universidade. Minha história é marcada desde o começo pela luta à incorporação de jovens pobres ao ensino superior. O racismo é um drama que afeta o nosso país e é um fenômeno perverso e doloroso. Porém penso que é impossível combater o racismo entronizando a ideia de raça, ou seja, colocando a raça no centro de uma política que visa combater o racismo. É uma incoerência, porque ao contrário de diminuir o racismo, essa política o acirra. Somos um país com leis que combatem o racismo, onde é preciso fazer um “manual antirracista” para ensinar as pessoas que existe o racismo. Em uma sociedade segregada, como os Estados Unidos, não seria necessário elaborar um manual. Isso não quer dizer que, aqui, as pessoas não sejam racistas, mas, sim, que o racismo foi reprimido por lei desde a República. De 2001 a 2012, participei de audiências públicas e escrevi duas cartas, junto com diversos outros intelectuais, que foram dirigidas ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal para expressar nosso posicionamento sobre os perigos da política de cotas raciais que dividiria o Brasil legalmente entre brancos e negros. Não fomos ouvidos. E vemos hoje, especialmente em ambientes universitários, o acirramento do racismo produzido por comissões de heteroidentificação racial. Diferentemente das cotas raciais, uma ação afirmativa endereçada para pobres incluiria automaticamente os negros e não seria necessário marcar ninguém com a raça. A ideia de raça, de que há pessoas superiores a outras por causa da raça, é odiosa. Os tribunais raciais organizados nas universidades para determinar que candidatos são negros e têm direito à reserva de vagas se valem de técnicas racistas do século XIX, medindo a tonalidade da pele, o tamanho do nariz e o tipo de cabelo. Com isso, reforçam a ideia de raça biológica, além de produzir mais injustiças.